terça-feira, 24 de setembro de 2019

Usos e Costumes dos Ciganos



Ao longo do tempo, após sua chegada à Europa, os ciganos foram acusados de toda espécie de crime pelas populações sedentárias, que não entendiam como um povo poderia viver com tanta liberdade, sem apego a uma terra determinada. Além disso, da admiração inicial, fomentada, principalmente pelos líderes religiosos, iniciando-se pelo Arcebispo de Paris, quem primeiro ligou os ciganos à bruxaria, os ciganos passaram a ser vistos como verdadeiros inimigos da fé cristã, que contra eles lançou um processo sistemático de perseguição e destruição. As lendas que ligam os ciganos aos sofrimentos da Sagrada Família, da morte das crianças em Belém, da traição de Judas e do roubo do quarto cravo foram criadas com o fim específico de jogar contra esse povo a ira cristã, já que essas lendas não resistem à mais superficial análise histórica, tratada com a seriedade com que foi elaborada a pesquisa linguística que determinou a origem desse povo. Assim, além dessas lendas infames e destinadas a desacreditar os ciganos, outras acusações foram sendo acrescentadas. Bruxaria, feitiçaria, canibalismo e outras barbaridades foram atribuídas aos ciganos, enquanto eram sistemática e metodicamente perseguidos. Esse comportamento ainda hoje persiste. Os ciganos ainda são relacionados a tudo de ruim que possa acontecer numa comunidade e sua chegada muitas vezes é motivo de reações até violentas da parte de cidadãos menos esclarecidos. Associam-nos ainda a roubos, desastres naturais, como ventanias e tempestades, além de toda sorte de trapaças e falsificações. Na raiz de tudo isso encontra-se o fato inegável de que ciganos e gadjos têm modos diferentes de encarar a vida. A ignorância é a principal causa desse tratamento dispensado pelos sedentários aos ciganos, pois não conseguem compreender esse estilo de vida.


Preconceitos Contra os Ciganos


É fácil entender, dessa forma, todo o processo de formação desses preconceitos contra os ciganos. Em sua maioria, as pessoas imaginam que, em função do nomadismo e do sentido de liberdade, os ciganos tenham costumes dissolutos, que podem chocar as pessoas de costumes mais rígidos. Nada existe de mais falso em relação a esse povo, onde a mulher é extremamente pudica e tradicional. Para exemplificar melhor ainda, basta verificar que a prostituição é praticamente inexistente entre os ciganos. O adultério é condenado e execrado e a virtude é sempre exaltada. Os valores morais mantêm-se rígidos e cultivados como um aspecto cultural próprio desse povo. Outro aspecto típico dos ciganos que é mal interpretado pelos gadjos refere-se à maneira como vestem, embora isso seja muito diversificado entre os ciganos. Nos Estados Unidos, são chamados de Povo que se Veste de Vermelho, dada à predileção das tribos daquele país por essa cor. 



Alguns ciganos não se importam de se vestir com andrajos, sem, no entanto, dispensar os enfeites comuns e vistosos, próprios de sua tradição. Sentem-se à vontade dessa forma e pouca importância dão a uma roupa nova. Quando, no entanto, trata-se de uma cerimônia tradicional ou de uma grande festa, jamais abrem mão de seus trajes completos, cheios de cores, com enfeites, principalmente as mulheres. Usarão, nessas ocasiões, lenços coloridos nos cabelos, coletes ricamente bordados e enfeitados com pedrarias. As saias e as blusas serão sempre em tecidos brilhantes, esbanjando cores mas formando um conjunto harmonioso que dá ao grupo reunido o aspecto de um campo florido. 


Jamais dispensarão suas jóias, sejam de ouro ou apenas bijuterias, pois o objetivo é apenas enfeitar-se e não demonstrar riqueza ou aparentar ostentação, no que se  diferenciam dos demais povos, que vê no luxo e na demonstração de riqueza quase que uma necessidade social. Para o cigano, acumular riquezas é algo impensável, pois isso fatalmente acabaria por fixá-lo ou prendê-lo a um lugar, coisa que abomina, em seu desejo de liberdade e movimentação contínua.
Quanto à falta de higiene de quem são acusados os ciganos, trata-se também de outra falsidade ou má interpretação. Nas estradas, quando há água, o cigano mantém-se limpo. Sua falta, no entanto, não o impede de seguir em frente. Ele apenas convive com o problema passageiro.


As críticas, no entanto, tentem normalmente a mascarar uma outra realidade, a dos sedentários miseráveis, sem condições de saneamento básico e de moradia digna, que abundam por todo o planeta. Cada país têm seus problemas nessa área e deveria ater-se a solucioná-los. As populações do mundo sempre acharam conveniente desviar a atenção de seus problemas reais, concentrando-se em subterfúgios com que tentam aplacar suas consciências pesadas.


Durante a Inquisição ou mesmo na Segunda Guerra mundial, o genocídio de ciganos foi aceito porque pintava-se sobre eles e suas crenças um quadro negro, destinado justamente a provocar a ira daqueles que, passivamente, assistiam a tudo aquilo. Suas consciências ficavam preservadas com as mentiras e falsidades levantadas. Naquele tempo, como agora, o objetivo dos preconceitos sempre foi o mesmo: desviar a atenção das pessoas dos reais problemas de sua sociedade sedentária, acusando  gratuitamente uma cultura que não aceitam apenas porque não conseguem ou não querem entender.




A Origem do Preconceito


Já afirmamos que os valores defendidos pelos ciganos são totalmente diferentes
daqueles defendidos pelos demais povos, ou gadjos, o que provoca um natural conflito entre as duas culturas. Os gadjos vivem em função do passado e do futuro. Cultivam o que se foi e preparam-se para o futuro, amealhando bens e riquezas, planejando os dias que ainda virão, numa visão idealista de que o futuro poderá ser melhor, como se pudessem construí-lo. A fatalidade é algo muito forte entre os ciganos. Cultivar o passado só se justifica enquanto maneira de manter usos, costumes e preservar valores. Preparar-se para o futuro significa abrir mão de viver o presente e o cigano tem por lema que a vida se vive apenas no presente. O futuro é incerto. A morte repentina, a que todos estão sujeitos, pode jogar por terra todo um futuro brilhante e pacientemente construído. Ao fazer isso, o indivíduo não viveu seus dias. Preparou-se para um futuro que jamais chegará.


Para os ciganos, a velhice é uma conseqüência de se ter vivido um dia após o outro, aproveitando-os ao máximo. Por esse motivo, o dinheiro, para os ciganos, tem um valor enquanto atende suas necessidades imediatas. É um instrumento para chegar ao que precisa para viver seu dia a dia. Ele não deseja bens ou riquezas, porque, como já se disse, significariam o fim de sua liberdade. Nesse aspecto, diferenciam enormemente dos gadjos, que vivem em função do dinheiro. Observar os ciganos, em sua vida simples e alegre, preocupados apenas com o sustento daquele dia e não dos próximos, é algo que não é digerido pelos gadjos, que não entendem que alguém possa viver sem ser escravizado pelo vil metal.


Um dos hábitos dos ciganos que muito incomoda os gadjos, principalmente no interior, quando da passagem de uma caravana, é o fato dos viajantes apanharem frutas ou caçarem animais para sua refeição. Para os fazendeiros, isso é chamado roubo. Para os ciganos, isso é apenas aceitar o que a natureza oferece ao homem. Os frutos e os animais são, de direito, daqueles que deles têm necessidade. Essa lógica simples para os ciganos não é aceita e, mas combatida e hostilizada. Isso chega ao cúmulo de, antecipando-se à passagem de uma caravana cigana, fazendeiros mandarem pulverizar com veneno as plantações para que os ciganos delas não pudessem fazer isso.


Como um povo livre, o cigano encara tudo com praticidade, ao mesmo tempo que se interessa pelas coisas práticas. Um exemplo disso é a maneira como hoje está se disseminando entre eles o uso de trailers para viagens. Neles encontram todo o conforto necessário, podendo, inclusive, deslocar-se com maior rapidez e vencer distâncias que, antes, eram impossíveis com seus velhos e coloridos carroções. Com isso, perde-se uma longa tradição de conhecimentos e prática no trato e no treinamento de animais, atividade em que sempre se distinguiram.
Nos encontros que promovem ainda, em determinados locais do mundo, as velhas carroças cedem lugar gradativamente aos modernos veículos motorizados, sendo postas à venda. Com isso, um importante aspecto da arte e da cultura cigana, onde se retratava com habilidade e beleza a delicadeza e a imaginação de seus decoradores, está em processo de extinção. Os modernos trailers recebem pintura especial e cores tradicionais, mas não permitem a expressão de todo o talento artístico de um entalhe feito na madeira ou no metal, aplicado ao antigo meio de locomoção.


Segue-se uma praxe dos ciganos, de viverem o presente do modo mais prático possível, assimilando com naturalidade as características de seu tempo e das culturas dos povos por onde passam. Reflete também uma outra característica do espírito cigano: a da versatilidade. Se vendiam cavalos antigamente, porque deles se utilizavam, conhecendo-os profundamente, com certeza passarão a comercializar veículos motorizados. Sua inteligência privilegiada lhe dá meios de passar de uma para outra atividade com absoluta naturalidade.


Uma característica comum a todos os ciganos é sua natural inclinação para tudo que é fantástico ou maravilhoso. A origem disso remonta a suas origens, na antiga Índia, de onde trouxeram conhecimentos astrológicos que se completaram na Pérsia e no Egito. Em suas andanças, incorporaram toda sorte de crenças, não se fixando a uma religião determinada, mas assimilando ingredientes de todas elas. Foram associados as lendas dos lobisomens da Alemanha medieval, os morcegos-humanos que habitavam os Montes Cárpatos, as bruxas que agiam no interior da Inglaterra e da França, os montadores de bode, que agiam nos Países Baixos, os invocadores do demônio da Floresta Negra, os druidas da Grã-Bretanha, os fantasmas dos velhos castelos da Escócia, monstros fantásticos como os do Lago Ness e toda sorte de entes, duendes, gnomos e outros que povoam a imaginação das diferentes culturas por 
onde passaram.


Em todas as narrativas desses acontecimentos fantásticos, principalmente naqueles ocorridos durante o período mais negro da Inquisição, vamos encontrar relatos de grupos de ciganos perseguidos e mortos, acusados da prática de uma dessas lendas.


Em fins do século XVII, com o domínio turco da Europa Oriental, conta-se que um grupo de ciganos fugiu para os países do ocidente da Europa, espalhando o terror. Pertenciam a uma seita até hoje não devidamente esclarecida, chamada de Montadores de Bodes. Caracterizavam-se pelo terror que espalhavam, praticando os crimes mais hediondos, principalmente contra jovens virgens e crianças recém-nascidas. Segundo a lenda, eram acompanhados de demônios, que se encarregavam de arrebanhar as almas das vítimas desses ataques sanguinários e cruéis. Muitos ciganos foram presos, torturados e condenados à forca e à fogueira por esses crimes, já que, além de assassinos e de terem pacto com o demônio, aqueles ciganos, segundo seus acusadores, abjuravam Jesus Cristo e a religião.


As informações contidas nos processos que foram lavrados na época detalham,
inclusive, a maneira como esses bandos eram constituídos e até como um novo membro passava a fazer parte, num ritual de iniciação verdadeiramente escabroso. Além de quebrar uma imagem de Cristo e de urinar e cuspir sobre ela, ingeriam hóstias consagradas com vinho e sangue de virgens e crianças.
Além disso, comiam uma espécie de bolo, feito de carne humana, sangue, vísceras de um recém-nascido e hóstias.


Para se locomoverem, montavam em bodes, que os levavam a qualquer parte, para cometerem suas atrocidades. Vale dizer que todos esses relatos foram feitos por testemunhas que não precisavam se identificar e que a confirmação era arrancada através de métodos abomináveis de tortura. O que ocorreu, na realidade, é que, coincidindo com a fuga de ciganos do domínio turco, bandidos e desertores de toda sorte invadiram igualmente a Europa Ocidental, roubando, estuprando e matando, praticando toda sorte de crimes possíveis. Se já não viam com bons olhos os ciganos, ligá-los a essas fantasias foi algo muito fácil para os religiosos da época. As lendas que contam e em que acreditam não foram necessariamente vividas por eles, mas naturalmente assimiladas quando de sua movimentação pelos países onde elas se originaram.

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